A polêmica sobre o passaporte vacinal nas escolas: depende da vontade dos pais?

Escolhas individuais das famílias não podem se sobrepor ao direito da criança, explica advogada; promotora da Infância e Juventude lembra que a vacinação é uma estratégia coletiva e, logo, exige o envolvimento de toda a população.

Por: Verônica Fraidenraich /Canguru News

Para diretora da SBIm, "não faz o menor sentido deixar uma criança sequer que seja morrer de uma doença para a qual tem vacina e é eficaz, como são a Pfizer e a Coronavac".

Com o início do ano escolar e o aumento preocupante de casos de Covid-19 entre crianças e adultos pela variante ômicron – em pelo menos sete estados, UTIs pediátricas estão com cenário crítico –, surgiu uma polêmica discussão quanto à exigência do comprovante de vacinação nas escolas e a obrigatoriedade da vacina infantil – já autorizada no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério de Saúde. Ainda que o ministério afirme que a vacinação infantil não é obrigatória, especialistas afirmam que, por lei, a imunização é sim imprescindível.

“A vacinação não depende da vontade dos pais, não é uma questão de escolha, é uma questão de direito da criança e dos adolescentes que deve ser garantido pelas famílias e pelo Estado”, diz Ana Claudia Cifali, advogada do Instituto Alana. Ela ressalta que se a decisão dos pais gerar dano à saúde e à vida da criança ela deve ser questionada.

Ainda que mães, pais e responsáveis tenham o poder de orientar e tomar decisões em nome de seus filhos e filhas, segundo a legislação nacional, esse poder não é incondicional, mas sim limitado pelos direitos da criança e melhor interesses infantis, que no caso das vacinas são detalhados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirma a advogada, em artigo de sua coautoria, publicado no site Jota.

Para Luciana Bergamo, promotora de Justiça da Infância e Juventude, na cidade de São Paulo, a vacinação é sempre uma estratégia coletiva, “meu filho não estará protegido se o outro não tiver, e isso serve para os adultos também”. Ela destaca que existem decisões judiciais, anteriores à pandemia da Covid-19, que impõem essa obrigatoriedade de vacinação das crianças para todas as vacinas previstas no Programa Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, com o objetivo de sistematizar as ações de vacinação no país.

promotora explica, no entanto, que exigir a vacinação infantil contra a Covid-19 não  significa “entrar na casa da família e forçar a vacinação, não é isso, mas se a vacina não for dada, desde que não haja contraindicação médica, pode ter consequências jurídicas”.

A multa prevista no ECA (artigo 249) para as famílias que descumprirem seus deveres ou determinações de autoridade judiciária ou do conselho tutelar é 3 a 20 salários mínimos, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

A maioria das famílias – 79%, segundo pesquisa Datafolha – se mostra favorável à vacinação dos pequenos. Em São Paulo, a imunização dessa faixa etária já atingiu mais de 500 mil crianças, segundo o governo estadual. Para esse público estão sendo usados os imunizantes da Pfizer, em crianças de 5 a 11 anos, e o Coronavac, na faixa etária de 6 a 17 anos. No geral, a aplicação se dá mediante apresentação de documento com foto e CPF da criança e de um dos responsáveis e não é necessário recomendação médica. Alguns estados e municípios exigem agendamento prévio.

STF e Ministério Público reforçam necessidade de fiscalizar vacinação

Na semana passada, a partir de um pedido do partido Rede Sustentabilidade que exigia cumprimento da imunização infantil no país, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski enviou um ofício aos chefes dos Ministérios Públicos dos estados e do Distrito Federal para que fiscalizem se a vacinação de menores de 18 anos está ​sendo cumprida.

Em nota técnica desta quarta-feira (26), o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), do Ministério Público dos Estados e da União, disse “ser fundamental que haja uma grande mobilização nacional na defesa da imunização em geral da população e em especial de crianças e adolescentes (…) a fim de ampliar a cobertura vacinal para todos os imunizantes disponíveis, não só da covid-19”. A nota também diz que as escolas devem exigir caderneta de vacinação completa, incluindo a vacina contra a Covid.

Na terça-feira (25), o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mario Sarrubbo, também recomendou aos membros do Ministério Público para que, “empreendam as medidas necessárias” para garantir a vacinação das crianças entre 5 e 11 anos de idade contra a covid-19”.

A exigência do comprovante de vacinação nas escolas

Assim como a vacina é obrigatória por lei, especialistas entendem que a exigência do comprovante de vacinação nas escolas também o deva ser, porém, sem negativa da matrícula ou a proibição de frequência à escola.

“O fato de a criança ou do adolescente não apresentar caderneta de vacinação não significa que a criança seja afastada da frequência escolar. Ela nunca pode ser impedida de assistir aulas”, destaca a promotora da Infância e da Juventude.

Na prática, contudo, nem todo mundo tem pedido o comprovante de vacinação neste período de volta às aulas presenciais em grande parte das escolas do país. Levantamento realizado pelo portal G1 mostra que 14 estados não exigirão a imunização dos estudantes. Outros sete disseram que vão cobrar a carteira atualizada. Em três estados, isso ainda não está definido e outros três não informaram. As capitais têm cenário semelhante: 14 não pedirão o comprovante de vacinação; 5 vão cobrar a sua apresentação; 4 não se decidiram e 3 não informaram o que será feito.

A variedade de situações se deve ao fato de que alguns estados e municípios possuem legislação própria quanto à necessidade de apresentação de comprovante de vacinação nas instituições de ensino. É o caso do Rio de Janeiro e de São Paulo, que na Lei 17.252, de 17/03/2020, afirma que alunos de até 18 anos de escolas públicas ou particulares apresentem comprovante de vacinação atualizado no ato da matrícula, salvo contraindicações confirmadas por atestado médico. O prazo para regulamentação da situação é de 60 dias, segundo a norma.

A secretaria da educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) informou que só exigirá a carteira de vacinação das crianças no fim do 1o bimestre, mas que isso não será um impedimento para realização da matrícula. Segundo a secretaria, a escola, por lei, tem a obrigação de informar os órgãos responsáveis, como o conselho tutelar, da não apresentação do caderneta para que as medidas cabíveis sejam tomadas. Na capital paulista, algumas escolas particulares têm pedido aos pais que encaminhem comprovante de vacinação digital.

Como escolas deverão proceder em casos de alunos não vacinados

Para além da exigência de vacinar as crianças, outra questão que deve ser esclarecida é quanto ao que será feito com os casos de não-vacinação.

Para a advogada do Instituto Alana, ministério público e conselhos tutelares devem estar em permanente comunicação e articulação para garantir a promoção do direito de vacinação das crianças. “Tem que ter uma comunicação fluida entre escolas e conselhos tutelares para depois ser feita a comunicação aos ministérios públicos”, analisa Cifali.

Em São Paulo, portaria conjunta, n o 001, de 18/01/21, das secretarias municipais de saúde e educação da cidade, determina os procedimentos e as instâncias a serem convocadas se o aluno não tiver tomado a vacina contra a Covid-19.

“As escolas veem a caderneta e não sabem interpretar e nem é função delas averiguar se o aluno tomou todas as vacinas, se falta alguma e quais são obrigatórias. Então, a partir dessa portaria, que vai começar a funcionar agora, será possível ter o fluxo de vacinação”, relata a promotora da Infância e Juventude de São Paulo.

A ideia é que, se a caderneta não estiver em dia, a escola chame os pais para conversar e explicar a importância da vacinação infantil. Se a família não seguir a orientação, a escola comunica a secretaria municipal de saúde, que, novamente, convocará os pais ou responsáveis para um encontro em que serão esclarecidas questões relacionadas à imunização. Se ainda assim a conversa não surtir efeito, o conselho tutelar entra em ação, ou, em último caso, o Ministério Público.

“Pode acontecer do caso ser encaminhado ao ministério, que, depois de chamar e orientar pais e não obter sucesso, pode ajuizar ação para obrigá-los a vacinar o filho sob risco de que paguem uma multa, como já ocorreu em outras ações. Mas a gente acredita que serão poucos os casos, porque sabe que a maioria vai vacinar os filhos”, avalia a promotora.

Inclusão no Plano Nacional de Imunizações

As vacinas contra a Covid disponíveis para crianças estão previstas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), porém, não fazem parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Isso, no entanto, não invalida a sua obrigatoriedade e fica claro em julgamento do STF sobre se pais poderiam deixar de vacinar o filho por questões filosóficas, religiosas, morais e existenciais. O supremo fixou que mesmo não fazendo parte do PNI, há outras situações que tornam obrigatória a imunização infantil contra a Covid.

“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis”, afirma o STF na decisão.

Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações  (SBIm), relata que independentemente da inclusão da vacina contra Covid no PNI, ela deve ser aplicada nas crianças. “Não faz o menor sentido deixar uma criança sequer que seja morrer de uma doença para a qual tem vacina e é eficaz, como são a Pfizer e a Coronavac. Tem que confiar no órgão regulatório, a Anvisa, que é extremamente rígido nas nossas avaliações e reconhecido internacionalmente como uma referência de alto nível. Não podemos deixar que fake news amedrontem a população e atuem contra interesses das crianças, que têm direito à saúde e a se proteger”, diz Levi.

Ela explica que a decisão de inclusão de uma vacina no PNI não tem a ver só com segurança e eficácia, e leva em conta vários outros critérios, “como a disponibilidade de doses, questões logísticas, de conservação, custo-benefício, acordos comerciais com produtores, ônus ao sistema de saúde e impacto da doença na população, tudo isso é avaliado”, diz ela.

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